terça-feira, 1 de julho de 2008

o congresso das almas penadas

Vivemos paredes meias com mortos-vivos. Sabemos da sua existência porque, quando a noite cai, ouvem-se passos, portas que batem, sons eléctricos que atravessam paredes e vozes que se alimentam do silêncio. Vivemos em casas assombradas. No dia seguinte, quando encontro pessoas nos elevadores, tenho a nítida sensação que já os vi algures e saúdo-os para que não desconfiem da minha desconfiança. Em geral, respondem às saudações, mas são seres fantasmagóricos que em noites de lua cheia, irrequietos, colocam no ar televisões desgovernadas, gritam “golo!” em jogos de futebol imaginários e em horas inapropriadas, munidos de berbequins, instalam candeeiros nos tectos.

Mas há noites em que reina um silêncio sepulcral. Os únicos sons são sibilos do vento norte que entram sorrateiramente pelas frestas das portas das varandas. Nestas alturas, para afrontar o vazio, grito “ está aí alguém?” “onde se meteram seus velhacos?” “ pensam que me amedrontam, seus canalhas?! e ninguém responde neste cemitério de almas penadas em que se transformaram os prédios altos das cidades. Mas no Domingo passado, numa tarde áspera de calor, surgiu uma zoada que ocupava todos os cantos do prédio. Não era o Vento Norte porque lá fora as folhas das árvores mantinham-se imóveis como esculturas de jardins. Encostado à minha parede da sala, um grupo de vozes afinadas, primeiro parecia que uivavam, depois repetiam em uníssono sons dos mantras, num linguajar tão estranho como se duas dúzias de norte-vietnamitas falassem ao mesmo tempo. Se fosse à noite diria que era um congresso de almas penadas que nunca mais descobriam o caminho da luz, mas a claridade da tarde faz mossa nos olhos frágeis de gente morta e acreditei que seria um caso muito mais complexo. A convenção demorou a tarde inteira. Mantive-me quieto para não causar qualquer dano à cumplicidade dos membros da confraria e mesmo nas pausas nunca arrisquei bater na parede para solicitar menor chinfrim. O melhor para enfrentar o mistério é fazer de conta que ele não existe…

Depois, calaram-se de vez. Ainda em estado de choque, semelhante à fase posterior a uma experiência mística, ouvi toques repetidos na minha porta de entrada. Pelo buraco da porta reconheci uma alma que por vezes vagueia comigo no elevador. O seu ar aterrorizado causou-me curiosidade e pressenti que a origem seria a sessão esotérica, testemunhada por mim ao longo da tarde. Ao abrir a porta, tal como o pressentimento, perguntou sem preparação prévia e em som grave, se eu ouvira os uivos. Assenti, tentando não demonstrar desassossego. Questionou se não seriam muçulmanos num momento preliminar à instalação de bombas na cintura de um suicida. Disse-lhe que não conhecia as fases de uma decisão tão dramática, mas, para a acalmar, garanti-lhe que por muito estranho que aquilo fosse, não me pareciam rituais islâmicos. Desdramatizei. Agradeceu a boa vontade, mas lamentou a minha ignorância! Já me aconchegava novamente ao ninho quando batidelas na porta soaram de novo. Pelo buraco identifiquei outra alma conhecida. Em tom de confidência, depois de lhe confirmar que ouvira a sessão de aulidos, garantiu-me que era um grupo espiritualista, de cariz ecuménico, que acredita na reencarnação e em óvnis e veio comemorar o solstício de Verão. Constroem correntes como quem quer abraçar o universo e a energia é reencaminhada em obséquio dos membros que gostam de estar de mãos entrelaçadas e a entoar cânticos.

Não lhe perguntei como decifrou o enigma e não demonstrei surpresa por aí além. Mas para quem se habituou a ouvir sons de móveis arrastados a horas tardias; vozes alteradas de madrugada; sons de autoclismos descarregados e estores arrancados à força das janelas… como é que poderia ficar impressionado com rituais tão melodiosos e inofensivos como aqueles que criam correntes e salvam almas do vazio?!

8 comentários:

Anónimo disse...

Oh, eu seria muito mais feliz se tivesse fantasmas e almas penadas disso! Em vez disso, tenho índios, macacos e bezerros. Tenho gente pouco civilizada que parte portas de elevadores, que desata à pancada nas reuniões de condóminos, que chama a polícia quando não gosta da música que o vizinho está a ouvir, que tem gasolina e familiares desta em casa, que manda copos e comida pela janela, gente que quer comprar a pirilampa em vez do pirilampo.

Levem esta bicharada toda daqui e repovoem o prédio com almas penadas! Eu não me queixo!

Anónimo disse...

Ficou ali um disso fora do sítio. Esse também pode vir cá parar ao prédio, acho que há lugar para ele.

gingerandclove disse...

City life somehow marks us with this shadow of loneliness...as we watch the strangers trespassing our private spaces..even walking through us at times!
Country is different. No ghosts. Even the local madman here lacks the misterious aura. I love the happy campo existence. Yet one thing i miss about my Petersburg is this feeling of sweet and strange solitude, yes..

gingerandclove disse...

http://polushkin.net/1888

the whole "hallucinating" series is amazing, i think..

x

hm. you do read english right:))?

Bruma das Ilhas disse...

A vivência em condomínios tem as suas coisas... Por isso é que alguns tentam acabar com esses incómodos e procuram que nem as almas penadas o incomodem noutro ambiente. Lembras-te daquele que no acto "de purificação interior" do corpo ia desfrutar as almas penadas por trás do castelo?...E lembras-te daquele que depois de um acto idêntico atirava uma pedra à porcaria (para não usar um termo impuro...)? Belos tempos...Em que as almas penadas não eram desejadas!...

ilhéu disse...

pois era, Bruma das Ilhas, nem imaginas a saudade!!! Abraço

::::: disse...

Eu acho que eram mesmo bombistas... ;)
Mas agora percebo alguns estranhos e atormentados "ruídos" que ouço vindos do chalé abandonado ao lado do meu prédio!!!
Ainda tenho alguma sorte: não tenho de partilhar elevador todas as manhãs (que são momentos íntimos!) com outras pessoas.
Pela manhã, só mesmo a Carolina que tem 3 anos e que desce os 3 lances de escadas com o seu saco de pelúcia com os seus companheiros/bonecos de brincadeiras e diz "- Xau! Até logo!" com uma inocência que nos faz, à partida, ganhar o dia...

Anónimo disse...

Pois, mas há pessoas teimosas que querem à força trazer à baila coisas que já estão mortas, enterradas e podres :S Galheiro com elas!