segunda-feira, 28 de julho de 2008

o banco de pedra

Há viagens inúteis. O regresso à casa da infância nada acrescenta ao nosso próprio mundo, apenas nos ajuda a conservar a face dos que lá ficaram. Nas andanças do tempo, correspondente à velocidade do próprio universo, o que muda verdadeiramente são as pessoas, o seu rosto, posturas acrescentadas de neuras e desencantos, enquanto as pedras, os horizontes, as esquinas e recantos permanecem tão iguais que facilmente imaginamos que ainda ontem andávamos por ali contando berlindes e empurrando caricas por cima dos muros.

E foi isso que ontem aconteceu. Cheguei no meio de um sol áspero, ao início da tarde e escondendo-me como podia nas sombras, passeei por ruelas desertas e silenciosas, outrora cheias de odores e sons de gente e com varandas engalanadas por sardinheiras vermelhas. Ruas tão estreitas que da varanda das casas poderiam trocar-se lembranças, mas agora, com as janelas fechadas e o silêncio pintando o horizonte, criam um nó no estômago, semelhante ao vazio que nunca consegui preencher, após a minha partida sem regresso. Apenas duas senhoras idosas, encostadas a uma esquina, trocavam notícias ao mesmo tempo que olhavam com uma curiosidade quase descarada para um viajante que analisava de forma atenta aquelas fachadas que sempre foram como agora aparentam. A indiscrição foi tanta que uma delas me perguntou se procurava alguém, com a promessa de auxílio. E timidamente expliquei o motivo da peregrinação e quem era e quem fui e elas lembravam-se não de mim porque o tempo escondeu há muito o menino, mas de uma família que morava na Rua das Flores e que se ausentara tão depressa como se tivesse sido expulsa. Perguntaram por todos os que habitavam a casa de pedra com um sótão que dava para um campo cheio de videiras e um alambique que confeccionava azeite amarelo e contei-lhes as generalidades mais significativas. Disse-lhes coisas tão banais e pessoais que apenas se dizem aos amigos, apesar de já não saber nem os seus nomes nem quem eram. Aliás, uma delas, a certa altura, disse-me que era a mãe do Zeca, aquele meu amigo da escola que andava sempre a correr como um cabrito porque a maioria julgava ter razões para lhe dar uma surra e eu defendia-o sempre que podia por ser tão frágil no que tocava às lutas. E hoje, como responsável pelo rancho folclórico, olhei-o na minha fantasia a correr da mesma maneira, mas com passos idênticos aos outros que dançam com ele.

Depois despedi-me das senhoras pela primeira vez porque na outra não tive tempo para me despedir de ninguém. Por indicações precisas, descobri o Augusto, redondo e orgulhoso do empresário em que se tornou. Na infância éramos tão vizinhos que da minha varanda eu via a casa dele e combinávamos brincadeiras se falássemos aos berros. O engraçado é que quarenta anos para uma espécie de amigos não correspondem a tanto tempo. Para os mais recentes poucos meses de ausência é uma machadada forte na intimidade, ficamos mais reservados e acanhados, com aqueles tão longos como a própria vida, mantém-se a mesma cumplicidade, resguardada pela inocência, tal como o vinagre mantém sóbrios os pimentos verdes. E contou-me tantas coisas dele e de amigos comuns que me reencontrei com todos no recreio da escola, alguns deles perdidos em países longínquos, outros desaparecidos por razões várias, outros ainda vivendo com aquela normalidade que nada há para dizer. Sentados num banco de pedra e sem pressa.

Pedras e casas com cores diferentes, mas as pedras resistem melhor a quatro décadas do que as pessoas. O Augusto redondo, a sombra do seu tio marceneiro que a loucura já não me identificava em lado algum, três personagens ali naquele sítio, num banco de pedra, poiso de outros tempos quando ainda julgávamos que a eternidade nos manteria juntos. E senti pena por ter saído contra a minha vontade para lugares onde ninguém me pergunta por ninguém lá de casa porque ninguém sabe quem lá vive, como se nos perdêssemos da gente como fantasmas vítreos…

7 comentários:

FLY disse...

Fogo! "Há dias em que uma pessoa o melhor que tem a fazer é mesmo não sair de casa" /casa=blog :)/! Logo hoje...! Eu até posso não conhecer a maioria das pessoas do meu prédio (e até vejo algumas vantagens nisso) mas quando se gosta muito de pessoas de prédios mais distantes e elas têm que ir embora para a sua terra natal e sabe-se lá se voltam..., garanto-te que dói! Mesmo! Por isso, não me fales (hoje) de regressos à terra natal! Fogo!
Ah, quanto às pedras…, à distância não se sabe nem se sente nada por elas. Ao perto são outra coisa. É sempre possível "virá-las" e observar a vida (ecossistemas) que elas encobrem... Lindo! Fazia isso quando era puto (na terra natal) e ainda agora (na cidade) dou uns pontapés numas pedritas para ver se encontro algo de interessante por baixo delas… Nada…

Abraço

Anónimo disse...

gosto mesmo do teu estilo de escrita... :-)

às vezes era melhor nem voltar à casa de infância, mas deixá-la abandonada é como uma desonra... oh!, dilemas, dilemas!

Anónimo disse...

O meu pai andou aqui pelo blog, e gostou muito do que escreves... Ele é editor, e gostava que passasses pelo blog da editora. Enfim, cá fica ele: http://casadosul.blogspot.com
\o/

Anónimo disse...

...são sentimentos de quem viveu a infância na sua terra e depois, por força das circunstâncias, teve de ir para outro sitio viver, já numa fase adulta. Aconteceu-me o mesmo. Quando voltamos às nossas origens é como se fossemos "aliens" na nossa terra... pelo facto de já ter passado tanta coisa que perdemos o fio dos acontecimentos. Vamo-nos inteirando dos factos de uma forma seca e avulsa. É como se tivessemos a faculdade de saltar no tempo. Andamos aos saltitos. Para mim é com se uma espada me cortasse. É a dor do tempo que passou. Não há muito tempo fui à rua onde nasci, pareceu-me tudo tão estranho... mas revi-me em flashs a brincar... noutros tempos...
av

Unknown disse...

O regresso às origens obriga a sentimentos contraditórios, a doses inenarráveis de paciência (para nós e para os outros), a dor/prazer numa atracção pelo abismo, difícil de descrever (e talvez mesmo de viver). Mas está em causa o nosso próprio (re)conhecimento, sem o qual perdemos as referências. E assim, ciclicamente, lá vamos nessa descida aos infernos como fez Eneias, guiado pela mão do pai, para perceber como o mundo se organizava. E organizamo-nos, não haja dúvidas.

Gostei de ver como a tua escrita suscita o interesse de editoras. Estamos todos a torcer para isso, mas tu és muito teimoso...

Beijinhos

P.S. Tenho andado preguiçosa nos comentários, não nas leituras

Anónimo disse...

Como consigo sentir o que escreves!

Olá tio !! :D Parabéns pelo teu talento !! Depois peço-te um autógrafo ihih ^.^

Bruma das Ilhas disse...

É o banco de pedra de muita gente que vem e que em pouco tempo se vai...
Este texto, como sempre bem escrito, é uma reflexão que eu próprio já fiz e faço quando visito, com muito gosto, locais da minha vivência, enquanto criança e que não foi muito diferente da do autor.
Aquele abraço...