quarta-feira, 27 de agosto de 2008

o pacto de silêncio



Foi há tanto tempo que já não se lembrava das palavras propriamente ditas. Possivelmente teriam sido bem diversas. Aliás, em abono da verdade, nem tinha a certeza se tal conversa acontecera. Mas mesmo que não tivesse ocorrido viveu como se aqueles termos alicerçassem a relação. Eles confiaram-lhe um segredo e um encargo: a vida dela não tinha qualquer sentido sem ele. Transformaram-no na sua âncora, no seu reduto. Como se o mistério de toda uma vida se resolvesse pela presença contínua de um ser vulgar como ele.

Na altura, timidamente, aceitou o pacto como a consequência do amor que também sentia, apesar de reconhecer a tarefa gigantesca e o peso em ser o fiel depositário.

E a enorme culpa quando tudo ruiu.

Ao longo dos últimos anos, encontrara na sua face a desilusão e nas suas lágrimas libelos acusatórios. Se ele fosse diferente ela seria feliz como nas histórias de encantar. Confiou nele a sua vida e o que recebera em troca? Pouca coisa. Afinal, não era o TAL, aquele que a libertaria deste mundo opaco, desta vida rotineira, sem graça. Uma conclusão sobejamente repetida por palavras, actos e omissões…

Naquele fim de tarde, olhava a rua por entre as cortinas, enquanto ela lia uma revista no sofá, encostada a um canto iluminado por um candeeiro. Fitou-a e a luz realçava-lhe a pele lisa e as feições perfeitas. Tentava inventar as palavras mais certas para lhe pedir desculpa por ser tão longínquo de quem ela queria que fosse. Por não ter conseguido atingir o patamar mínimo da exigência. Bebia mais do que a conta, não tinha cuidado com o corpo, qualquer exercício físico era um tormento, horas excessivas frente à televisão, tempo infindo na internet. Ela, pelo contrário, mortificava-se diariamente no ginásio, empenhava-se em ter uma vida saudável, lia livros de autores difíceis e não perdia uma peça de teatro. Nunca percebera o que via nele de tão interessante para lhe confiar a vida e cada vez mais encontrava razões para julgar que não estava à altura das circunstâncias.

Continuava no sofá sem trocar a posição das pernas, nem virar qualquer página da revista. Ele sem encontrar as palavras certas, esforçava-se para encontrar no exterior algo que segurasse a mente e o olhar. Vezes sem conta repetira-lhe que queria manter-se jovem e bonita de forma a estimular o desejo pelo seu corpo. Ele desleixara-se. Um príncipe transformado em bolota gigante. Peço desculpa, não consegui ter forças para aguentar a pedalada do tempo. Fiquei para trás ou fui com ele, não sei bem.

Mas não queria regressar à sala enquanto ela não o solicitasse.

A certa altura encontrou um poiso consistente para o olhar. Lá ao longe, a auto-estrada subia e descia a serra com milhares de luzes intermitentes a reflectir-se na noite. Uma fila de automóveis nos dois sentidos como se tratasse de uma roda de feira. Achou curioso pensar que se no mesmo local e ao mesmo tempo tantos seres surgiam do nada o facto era o resultado do seu próprio olhar. Como um cenário artificialmente criado devido à sua presença. Até que ouviu a voz, uma voz que não reconheceu, mas vinha dela, tinha quase a certeza.

E há quanto tempo não fazemos amor com aquela paixão do banco de trás do automóvel? E há quanto tempo não me surpreendes? E há quanto tempo não me comoves? E há quanto tempo não me levas por caminhos desconhecidos, naquele entusiasmo de olhar o novo, o inóspito? E há quanto tempo não me distrais da vida, deste andamento insípido do tempo? E há quanto tempo não me olhas como fazendo parte de ti e, em vez disso, desprezas-me como um apêndice que manténs com visível enfado? E há quanto tempo não passas por mim e me espias como um adolescente maroto? E há quanto tempo não me dizes palavras bonitas que me dê gosto em repetir? E há quanto tempo não trazes para casa um pequeno pedaço do mundo para o dividirmos em partes iguais?

E depois o silêncio. Imóveis, ele junto às cortinas, mas agora sem vontade de olhar o mundo. Envelhecera a paixão de tal forma que esta apenas se poderia segurar de pé à custa de muletas e mudez. Não valia a pena disfarçar.

Era agora a sua oportunidade. Então, continua que eu fico. A viagem ainda é longa e o cansaço não me liberta as pernas. A sério. Não percas a vida por causa de mim que rastejo. O que queres que diga? Que lamento? Mas teremos que repartir culpas. Sabes que apontar alguém como a solução da sua própria vida é eticamente condenável. Seria tão arbitrário como escolher uma estrela no céu e através dela pretender conhecer todos os mistérios do universo. Eu não sou o que esperavas como ninguém é o que os outros esperam. Talvez eu também te preferisse menos perfeita, menos digna, menos completa, menos exemplar. Talvez te quisesse mais humana, mais vulgar, mais grosseira.

Mas o silêncio resistiu. O rosto dela mantinha-se sobre a revista aberta, enquanto ele se libertava do refúgio das cortinas e procurava a escuridão do corredor que dava acesso ao outro lado da casa. Clarificar significaria encontrar uma solução que nenhum desejava.

1 comentário:

Bruma das Ilhas disse...

o silêncio faz parte do espelho da vida...e muitas das vezes difícil de quebrar, porque, de entre vários aspectos, depende, fundamentadamente, da formação moral e psicológica de cada indivíduo.
Aquele abraço...