Odiava-o há tanto tempo que já não se lembrava como ele era. Viviam na mesma casa, olhava-o todos os dias, mas não o via. Esquecera-se da sua face, das suas mãos ou se os sinais das costas se tinham alterado ou desaparecido. Conversavam sobre assuntos banais ao jantar, discutiam os problemas familares como pessoas vulgares, faziam amor todas as semanas ao princípio da noite e geralmente às escuras, mas nada transformava o sentimento que a corroía por dentro há mais de uma década. Era como se o ódio os juntasse, em vez do amor.
Aliás, se lhe fosse indiferente, há muito o tinha deixado. Não lhe fazia falta no jogo dos dias. Pelo contrário, a sua ausência até seria cómoda face à sua personalidade desarrumada e com pouco jeito para a ajudar na lide da casa. E muitas vezes fizera a si mesma a pergunta. Porque não continuar sozinha a caminhada, deixando-o à beira do caminho, como quem abandona um cão em local ermo? A mesma resposta surgia límpida desde sempre: o ódio dava-lhe forças para continuar e tinha receio que, se o largasse, esse sentimento desapareceria aos poucos tal como a sua lembrança.
Nesse dia, ao jantar, ao mesmo tempo que comia a sopa de agriões, conversava sobre um colega que se encontrava na iminência de ir para o desemprego. Discorria convicções sobre as alterações recentes ao código laboral e mediocridade dos chefes, um tema recorrente que ouvia sem fazer grandes comentários. E enquanto dissertava, ela sustentava a conversa com gestos de compreensão, ou de um encolher de ombros e esgares de desinteligência. Estava mais anafado, o cabelo continuava a cair e o alto da cabeça surgia claro como uma rampa de lançamento, com meia dúzia de cabelos pendurados no vazio. Dez anos passaram por ele de forma inexorável, com queixas frequentes pela falta de tempo para o exercício físico. Com toda a certeza desconhecia os sentimentos dela, pois os sinais não eram evidentes e raramente discutiam. O pior já tinha passado e talvez julgasse que o afecto que os unira no início, aos poucos, se reconvertera numa amizade cómoda de dois seres que não tinham para onde ir.
Nunca houve traições, nem qualquer episódio que originasse um sentimento tão avassalador. Nada encontrara de sórdido ou perverso desde o dia em que se conheceram em casa de amigos comuns. Apenas pequenas coisas de que as relações são feitas e condenadas. A única razão, o germe daquele rancor nunca revelado de forma crua, nem a ele nem a ninguém, nasceu no consultório do pediatra do filho, no dia em que o médico lhes participou que as análises revelaram uma deficiência profunda. Aí o seu mundo ficou tão abalado que não ficou pedra sobre pedra. Tudo ruiu em cima dela como se uma cidade inteira desabasse sobre o seu único habitante. E ele, sentado à sua frente, com as mãos entrelaçadas e as pernas juntas nos joelhos, apenas verbalizou “iremos sobreviver!”. Ela examinou-o com uma fúria visceral e, aí, rompeu-se de uma vez por todas o véu que os envolvia e lhes dava consistência. A aversão cresceu como uma larva que, aos poucos, ganha peso e asas e com uma força tão desesperada como nunca sentira na vida. Porque não se revoltou contra o mundo, contra a ciência, contra Deus e, como sempre, preferiu dar a ambos aquele sinal de esperança que ela não queria para nada? Como é que ele conseguiu manter a serenidade e um carácter sem mácula naquela situação, em vez de se revoltar contra a vida?
Nesse dia, há mais de dez anos. O filho que hoje amavam com a força dada pela responsabilidade de o terem para sempre, sem o poderem nem quererem partilhar, transformara-se na âncora de todos os gestos e de todos os sonhos. Mas na altura, tudo mudou. O trabalho exigente foi compartimentado pelos dois, desdobravam-se em actividades lúdicas e pedagógicas, para além da actividade profissional, e ao fim da noite, devido ao cansaço das andanças, atiravam-se para o sofá como se atiram os cadáveres para as valas comuns e ficavam lá até o sono já ser tão insuportável que se retiravam para o quarto e se estendiam na cama à espera do entorpecimento.
Mas em todos estes anos, mesmo quando o espírito se foi moldando à crueza do próprio destino, questionou-se sobre a razão de tal reacção contra o marido quando racionalmente nada o poderia incriminar, ou pelo menos não mais do que a ela própria. Mas era como se ele e o seu código genético tivessem maculado o campo límpido e sereno de uma família sem mazelas genéticas. Sempre o julgou responsável e muitas vezes se imaginou unindo-se a outro qualquer ser sem rosto nem alma, mas que lhe fizesse um filho semelhante com todos os outros. E depois aquele álcool ao fim da noite, hábito iniciado no tempo das facas longas, quando toda uma história se resumia a encontrar caminhos de vida não só para o filho como para eles próprios. E uma vez por semana, meio tocado, regressava do ajuntamento com os amigos mais próximos, com o hálito forte de cigarros devorados uns atrás dos outros, de quem se vai corroendo a si mesmo.
Ao mesmo tempo, manteve sempre os sinais amáveis para com ela, os presentes nas alturas certas, os vestígios de afecto que ela não ambicionava. Seria bom para ambos se ele desse o passo que ela nunca conseguiria dar. Procurar saídas mais optimistas. Mas tinha a certeza que ele não o faria, possivelmente, porque a odiava também.
5 comentários:
UAU!!!
Estou completamente siderada! Parece que levei um murro no estômago, bolas!
Não é que esteja surpreendida com a história de hoje. Antes estivesse. Mas não, o que é perturbador é de vez em quando cairmos em nós e verificarmos como as relações podem ser tão cruéis e desgastantes.
Sabes o que te digo? Mais vale estar só do que viver nesta paz podre. Hoje em dia, é uma prova de inteligência assumir a solidão. Desde que esta signifique estar rodeada de pessoas de quem gostamos. Tás a perceber? Não estou muito clara, mas acho que passou o que penso.
bj
P.S. Leste a crónica desta semana do Lobo Antunes na Visão? Magnífica! O homem percebe as mulheres
Ah! esqueci-me de dizer que adorei o título! Não podia ser melhor. Minadíssimo, pois claro! Qualquer passo em falso, e bum! Vai tudo à vida. (aqui para nós, era bem melhor)
vou ler a crónica. Beijo
muito bom o texto...
É a história de muitas vidas, principalmente daqueles 40% que nunca tiveram coragem de a alterar, porque estou certo que 50% deles já o fizeram. Se assim for, como será a vida dos restantes 10% que faltam a esta conta?...
O texto está fenomenal. Mas, outra coisa não se espera do seu autor, principalmente quando se o conhece há uns longos anos, não só pelo que tem escrito, mas por tudo aquilo que transmite à vida. Obrigado por alguns ensinamentos de vida... Aquele abraço.
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