Há viagens inúteis. O regresso à casa da infância nada acrescenta ao nosso próprio mundo, apenas nos ajuda a conservar a face dos que lá ficaram. Nas andanças do tempo, correspondente à velocidade do próprio universo, o que muda verdadeiramente são as pessoas, o seu rosto, posturas acrescentadas de neuras e desencantos, enquanto as pedras, os horizontes, as esquinas e recantos permanecem tão iguais que facilmente imaginamos que ainda ontem andávamos por ali contando berlindes e empurrando caricas por cima dos muros.
E foi isso que ontem aconteceu. Cheguei no meio de um sol áspero, ao início da tarde e escondendo-me como podia nas sombras, passeei por ruelas desertas e silenciosas, outrora cheias de odores e sons de gente e com varandas engalanadas por sardinheiras vermelhas. Ruas tão estreitas que da varanda das casas poderiam trocar-se lembranças, mas agora, com as janelas fechadas e o silêncio pintando o horizonte, criam um nó no estômago, semelhante ao vazio que nunca consegui preencher, após a minha partida sem regresso. Apenas duas senhoras idosas, encostadas a uma esquina, trocavam notícias ao mesmo tempo que olhavam com uma curiosidade quase descarada para um viajante que analisava de forma atenta aquelas fachadas que sempre foram como agora aparentam. A indiscrição foi tanta que uma delas me perguntou se procurava alguém, com a promessa de auxílio. E timidamente expliquei o motivo da peregrinação e quem era e quem fui e elas lembravam-se não de mim porque o tempo escondeu há muito o menino, mas de uma família que morava na Rua das Flores e que se ausentara tão depressa como se tivesse sido expulsa. Perguntaram por todos os que habitavam a casa de pedra com um sótão que dava para um campo cheio de videiras e um alambique que confeccionava azeite amarelo e contei-lhes as generalidades mais significativas. Disse-lhes coisas tão banais e pessoais que apenas se dizem aos amigos, apesar de já não saber nem os seus nomes nem quem eram. Aliás, uma delas, a certa altura, disse-me que era a mãe do Zeca, aquele meu amigo da escola que andava sempre a correr como um cabrito porque a maioria julgava ter razões para lhe dar uma surra e eu defendia-o sempre que podia por ser tão frágil no que tocava às lutas. E hoje, como responsável pelo rancho folclórico, olhei-o na minha fantasia a correr da mesma maneira, mas com passos idênticos aos outros que dançam com ele.
E foi isso que ontem aconteceu. Cheguei no meio de um sol áspero, ao início da tarde e escondendo-me como podia nas sombras, passeei por ruelas desertas e silenciosas, outrora cheias de odores e sons de gente e com varandas engalanadas por sardinheiras vermelhas. Ruas tão estreitas que da varanda das casas poderiam trocar-se lembranças, mas agora, com as janelas fechadas e o silêncio pintando o horizonte, criam um nó no estômago, semelhante ao vazio que nunca consegui preencher, após a minha partida sem regresso. Apenas duas senhoras idosas, encostadas a uma esquina, trocavam notícias ao mesmo tempo que olhavam com uma curiosidade quase descarada para um viajante que analisava de forma atenta aquelas fachadas que sempre foram como agora aparentam. A indiscrição foi tanta que uma delas me perguntou se procurava alguém, com a promessa de auxílio. E timidamente expliquei o motivo da peregrinação e quem era e quem fui e elas lembravam-se não de mim porque o tempo escondeu há muito o menino, mas de uma família que morava na Rua das Flores e que se ausentara tão depressa como se tivesse sido expulsa. Perguntaram por todos os que habitavam a casa de pedra com um sótão que dava para um campo cheio de videiras e um alambique que confeccionava azeite amarelo e contei-lhes as generalidades mais significativas. Disse-lhes coisas tão banais e pessoais que apenas se dizem aos amigos, apesar de já não saber nem os seus nomes nem quem eram. Aliás, uma delas, a certa altura, disse-me que era a mãe do Zeca, aquele meu amigo da escola que andava sempre a correr como um cabrito porque a maioria julgava ter razões para lhe dar uma surra e eu defendia-o sempre que podia por ser tão frágil no que tocava às lutas. E hoje, como responsável pelo rancho folclórico, olhei-o na minha fantasia a correr da mesma maneira, mas com passos idênticos aos outros que dançam com ele.
Depois despedi-me das senhoras pela primeira vez porque na outra não tive tempo para me despedir de ninguém. Por indicações precisas, descobri o Augusto, redondo e orgulhoso do empresário em que se tornou. Na infância éramos tão vizinhos que da minha varanda eu via a casa dele e combinávamos brincadeiras se falássemos aos berros. O engraçado é que quarenta anos para uma espécie de amigos não correspondem a tanto tempo. Para os mais recentes poucos meses de ausência é uma machadada forte na intimidade, ficamos mais reservados e acanhados, com aqueles tão longos como a própria vida, mantém-se a mesma cumplicidade, resguardada pela inocência, tal como o vinagre mantém sóbrios os pimentos verdes. E contou-me tantas coisas dele e de amigos comuns que me reencontrei com todos no recreio da escola, alguns deles perdidos em países longínquos, outros desaparecidos por razões várias, outros ainda vivendo com aquela normalidade que nada há para dizer. Sentados num banco de pedra e sem pressa.
Pedras e casas com cores diferentes, mas as pedras resistem melhor a quatro décadas do que as pessoas. O Augusto redondo, a sombra do seu tio marceneiro que a loucura já não me identificava em lado algum, três personagens ali naquele sítio, num banco de pedra, poiso de outros tempos quando ainda julgávamos que a eternidade nos manteria juntos. E senti pena por ter saído contra a minha vontade para lugares onde ninguém me pergunta por ninguém lá de casa porque ninguém sabe quem lá vive, como se nos perdêssemos da gente como fantasmas vítreos…