terça-feira, 25 de março de 2008

Os Filhos de Bali

Ameaçou-o com umas lágrimas descuidadas e sem nada dizer virou-lhe as costas, saindo do escritório. Ele ficou ali tempos sem fim, fixando a porta entreaberta, ouvindo passos cada vez mais ténues. A imobilidade correspondia à dificuldade em imaginar a vida sem ela.

Sentia o desejo de ficar ali para sempre, como uma estátua de sal bíblica, castigo por ter contemplado uma solução e não a ter adoptado como definitiva. Não a assumiu julgando-se imune à angústia, mas agora, despido e vazio, estranhou a incapacidade humana de gerir racionalmente as emoções. Frágeis momentos bastavam para destruir algo tão inabalável como a morte.

E tal como um condenado que pouco tempo lhe resta, olhou mais uma vez para a porta entreaberta, reviveu as lágrimas vertidas à sua frente e lamentou-as como vidas desperdiçadas. Qualquer situação de ruptura gera sentimentos de perda, mas a abertura ao futuro, incerta e vaga, faz sobressair com mais vigor o desconforto perante o desenraizamento. Que raio! – protestou - a segurança pessoal está ajustada em alicerces tão frágeis como peças de porcelana. O que há de mais delicado que um afecto? Os laços quebram-se na proporção inversa ao seu crescimento. Se exigem um tempo longo de gestação, do reconhecimento até à inclusão do outro, para a sua ruptura basta um pequeno pormenor, ridículo na aparência, mas olhado como traição à razão de si mesmo.

Quando antropólogos estudavam a cultura de uma tribo da ilha de Bali, confrontaram-se com comportamentos deveras estranhos das mulheres que sucessivamente originavam situações de intimidade com os filhos menores e quando estes estendiam os braços para receber o afecto repudiavam-nos rispidamente. A repetição das aproximações e afastamentos provocavam nas crianças comportamentos esquizofrénicos: se não se aproximavam não receberiam sinais de afecto, ao acederem aos chamamentos maternos e por serem ignorados receberiam tristeza e raiva. Era natural um esfriamento das relações de forma a fugirem de situações de compromisso. Estranhos rituais com propósitos culturais: ao tratar-se de um povo guerreiro, exigia dos seus membros a força e a demarcação sem mágoa de situações afectivas; era necessário relativizar as ligações para melhor se superar e suportar a dor das ausências ou da morte...

Infelizmente não somos assim, mas a verdade é que também não queremos ser. A nossa ligação à vida depende dos laços fortes que criamos. E por muito que gostemos da nossa autonomia, ao mesmo tempo, procuramos apoios que nos transformam em seres com raízes fortes. Mas não há respostas únicas, nem soluções abrangentes. A vida desempenha o papel de laboratório, local de experiências e de projectos de investigação, onde todos nós fazemos o papel de cientistas malucos que misturam ácidos com fumos, nem sempre com resultados satisfatórios. Mas cada qual terá de fazer opções, ou recuperar o destino dos filhos de Bali, fortes e com o seu destino nas mãos, ou então balouçar entre o seu próprio caminho e de todos os que se cruzam com ele. Os que procuram apenas certezas ou os que recusam cenários pacíficos e preferem destinos errantes sem amarras nem cedências…

Na janela o vento suava encostado aos vidros. O sol aos poucos ia desaparecendo da tarde com a cerimónia de quem pediu licença para se retirar. Recapitulou as cenas anteriores e a imobilidade deu lugar a passos rápidos e gestos enérgicos. Colocou o casaco por cima dos ombros e fechou a porta atrás dele. Na rua saboreou a sensação de se embrulhar com zelo no casaco comprido, enquanto ao seu lado uma correria de carros e pessoas, uns e outros com sintomas de pressa. Sentia-se num filme diferente, ninguém o esperava com impaciência, ninguém angustiado pela sua ausência. Era assim que gostava de viver, como um filho de Bali, guerreiro frio e astuto, vencedor de desafios e duro de coração. Não sabia durante quanto tempo aguentaria o frio, mas não era tempo de pensar o futuro…

3 comentários:

Anónimo disse...

Pois é, para nossa defesa, o melhor é mesmo contar só com o presente! carpe diem... quem quer mais do que isso?

Anónimo disse...

Pois é, para nossa defesa, o melhor é mesmo contar só com o presente! carpe diem... quem quer mais do que isso?

Anónimo disse...

Gostámos muito... e reconheci algumas paragens!
CONTINUA!!

ASS.: a tua misteriosa manucha