segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Antiquário


Era louco por antiguidades. Derretia todos os bens em trastes de todo o género, a maioria deles sem certificado de garantia. Perante a possibilidade das falsificações justificava que, mesmo assim, qualquer objecto de estilo antigo era mais valioso do que as modernices, todas semelhantes e sem alma. Em casa, prateleiras atravancadas de santos, pratos e artefactos diversos, tudo se entrelaçava como se uma máquina do tempo tivesse baralhado os séculos e fizesse colidir tudo no mesmo espaço.

Os poucos visitantes que se aventuravam na pesquisa percorriam as salas direitos como um pau de vassoura, sempre na eminência de colocar em crise a história universal ou a culpa própria. A atmosfera era de tal forma constrangedora que o receio de que um gesto menos medido pudesse causar um grave dano à civilização, retirava o prazer da contemplação dos objectos, dando lugar ao tédio e ao desejo inconsolável de sair dali para fora.

Dos amigos, guardados com idêntico esmero, afirmava que a melhor qualidade que lhes concedia era olharem o passado como o seu próprio destino. Nos encontros à volta de cigarros em noites vagarosas, a melancolia voltava-se contra a pouca vergonha dos novos que perdiam a memória e as referências para se transformarem em imitadores reles de modas e gostos estrangeiros. Ao mesmo tempo que os olhos se emudeciam ao celebrarem personagens históricas com uma estatura moral à prova de bala e de cultura tão densa onde era difícil alguém penetrar.

Ora esta paixão pelo antigo motivou o conúbio com uma velha gaiteira que detestava velharias e a ela própria, por já ser uma. Conheceram-se num antiquário em Lisboa, ele para dar vazão à neurose, ela funcionária da casa havia trinta anos. Após namoro rápido, casaram numa ermida do século XIII, abençoados por um Cónego tão velho como o próprio santuário. A lua-de-mel inebriante decorreu numas ruínas do sul de Inglaterra, onde menires e outros monumentos megalíticos enfrentavam o céu com sobranceria. Ele adorava morder-lhe as reentrâncias, fazer-lhe cócegas no bócio, amaciar as vergas e acicatar-lhe as rugas, o que deixava a mulher em estado de choque, pois ao invés, ela pretendia esconder-lhe os labéus à custa de cremes, pregas e roupas justas. Mas amava-a desalmadamente mais do que qualquer antiguidade com o argumento que era a única com potencialidades para envelhecer a olhos vistos.

Este prazer do arcaico, já com deficiências, vinha da infância. Sempre detestara ser novo, pois ninguém o deixava em paz pelo facto de o ser e quando adulto ainda era suficientemente novato para as enormes expectativas dos mais velhos. Só quando a idade lhe permitiu ser velho conseguiu ser dono de si mesmo e começou a viver. A colecção principiou-a com um Santo António de cedro do mato que encontrou no espólio de uma tia solteirona, depois algumas peças foram-lhe parar às mãos de forma errática, até à recolha criteriosa e infatigável de muitas outras preciosidades. Livros com lombadas rasgadas, instrumentos musicais com cheiro a naftalina, móveis, cerâmica. Sempre com uma atitude contrária à lógica do museu: em vez de usurpação, retirando as coisas do seu lugar natural, tudo fazia para que as peças adquiridas mantivessem a sua função original, partilhando-as com a vida como se ainda existisse o seu próprio tempo.

Um dia, confidenciava a um colega de trabalho que estranhava essa propensão para o antigo: “Há aqueles que convivem pacificamente com o seu tempo; outros buscam no futuro saídas para a mediocridade do presente; outros há que encontram no passado o sentido para a vida. Estes poderão ser historiadores, filósofos e antiquários. Destes últimos, a maioria por razões comerciais. Poucos com o firme propósito de não deixar o passado por mãos alheias e contribuir para a sua dignificação e segurança. É o meu caso. ”

1 comentário:

♥ Guida disse...

A Joana Margarida tem umas quantas costelas do velhote do texto. Por vezes, pergunto-me se nasci na década errada :\


Beijinho