segunda-feira, 31 de março de 2008

O Síndroma do Limpa-Pára-Brisas


Nestas férias da Páscoa, em viagem ao princípio da noite, na auto-estrada Porto –Lisboa, e bem perto da saída para a Figueira da Foz, começou a chover, primeiro uma chuva miudinha como pequenos gafanhotos expelidos da boca de um gago, depois gotas tão grossas como arroz carolino que golpeavam os vidros e escondiam a estrada. Sem nada o fazer prever, o limpa-pára-brisas deixara de funcionar. Eu bem abanava o manípulo com grande empenho, mas sem remédio tive de parar numa berma enquanto, ao meu lado, automóveis em velocidade de ponta como se tivessem lá dentro uma grávida em fim de tempo. Andei a pé uns minutos que pareceram horas até que descobri um telefone e ao pedir assistência tive muita dificuldade em dizer o local onde me encontrava porque é muito difícil nós termos a noção de qualquer outra coisa para lá do incómodo de estarmos dentro de uma auto-estrada e querermos sair rapidamente. O apoio chegou muito tempo depois e como o problema não foi resolvido, chamaram um reboque, mas não teve qualquer utilidade porque parara de chover e arrisquei fazer a restante viagem sem limpa-pára-brisas.

Esta história tão real como qualquer coisa a que chamamos realidade (aquele misto de concreto que se toca e, simultaneamente, um passado envolto em névoa fantasmagórica) fez-me pensar que algo tão ridiculamente importante como o limpa-pára-brisas colocava em causa o todo, menorizava de forma cruel as peças mais importantes do automóvel. Ou seja, nunca nos lembramos dos acessórios, até um dia em que eles se revoltam e se divertem em nos deixar apeados em qualquer fim-do-mundo.

Devido ao acontecimento lamentável pensei que, do mesmo modo, pequenos pormenores, tão pequenos que demorámos anos a ter consciência deles, sejam causa da infelicidade mais profunda porque analisamos a vida pelo prisma do limpa-pára-brisas. Andamos constantemente enredados em pequenas tragédias, em pequenos problemas que nos tapam os olhos, que nos bloqueiam os afectos, que nos distraem dos mistérios, nos escondem a beleza, nos retiram o prazer, nos fazem andar cá como condenados porque os outros têm, esses sim, a vida que sonhamos ter, a vida que não nos quer felizes como todos eles. Só que todos os outros pensam o mesmo…

terça-feira, 25 de março de 2008

Os Filhos de Bali

Ameaçou-o com umas lágrimas descuidadas e sem nada dizer virou-lhe as costas, saindo do escritório. Ele ficou ali tempos sem fim, fixando a porta entreaberta, ouvindo passos cada vez mais ténues. A imobilidade correspondia à dificuldade em imaginar a vida sem ela.

Sentia o desejo de ficar ali para sempre, como uma estátua de sal bíblica, castigo por ter contemplado uma solução e não a ter adoptado como definitiva. Não a assumiu julgando-se imune à angústia, mas agora, despido e vazio, estranhou a incapacidade humana de gerir racionalmente as emoções. Frágeis momentos bastavam para destruir algo tão inabalável como a morte.

E tal como um condenado que pouco tempo lhe resta, olhou mais uma vez para a porta entreaberta, reviveu as lágrimas vertidas à sua frente e lamentou-as como vidas desperdiçadas. Qualquer situação de ruptura gera sentimentos de perda, mas a abertura ao futuro, incerta e vaga, faz sobressair com mais vigor o desconforto perante o desenraizamento. Que raio! – protestou - a segurança pessoal está ajustada em alicerces tão frágeis como peças de porcelana. O que há de mais delicado que um afecto? Os laços quebram-se na proporção inversa ao seu crescimento. Se exigem um tempo longo de gestação, do reconhecimento até à inclusão do outro, para a sua ruptura basta um pequeno pormenor, ridículo na aparência, mas olhado como traição à razão de si mesmo.

Quando antropólogos estudavam a cultura de uma tribo da ilha de Bali, confrontaram-se com comportamentos deveras estranhos das mulheres que sucessivamente originavam situações de intimidade com os filhos menores e quando estes estendiam os braços para receber o afecto repudiavam-nos rispidamente. A repetição das aproximações e afastamentos provocavam nas crianças comportamentos esquizofrénicos: se não se aproximavam não receberiam sinais de afecto, ao acederem aos chamamentos maternos e por serem ignorados receberiam tristeza e raiva. Era natural um esfriamento das relações de forma a fugirem de situações de compromisso. Estranhos rituais com propósitos culturais: ao tratar-se de um povo guerreiro, exigia dos seus membros a força e a demarcação sem mágoa de situações afectivas; era necessário relativizar as ligações para melhor se superar e suportar a dor das ausências ou da morte...

Infelizmente não somos assim, mas a verdade é que também não queremos ser. A nossa ligação à vida depende dos laços fortes que criamos. E por muito que gostemos da nossa autonomia, ao mesmo tempo, procuramos apoios que nos transformam em seres com raízes fortes. Mas não há respostas únicas, nem soluções abrangentes. A vida desempenha o papel de laboratório, local de experiências e de projectos de investigação, onde todos nós fazemos o papel de cientistas malucos que misturam ácidos com fumos, nem sempre com resultados satisfatórios. Mas cada qual terá de fazer opções, ou recuperar o destino dos filhos de Bali, fortes e com o seu destino nas mãos, ou então balouçar entre o seu próprio caminho e de todos os que se cruzam com ele. Os que procuram apenas certezas ou os que recusam cenários pacíficos e preferem destinos errantes sem amarras nem cedências…

Na janela o vento suava encostado aos vidros. O sol aos poucos ia desaparecendo da tarde com a cerimónia de quem pediu licença para se retirar. Recapitulou as cenas anteriores e a imobilidade deu lugar a passos rápidos e gestos enérgicos. Colocou o casaco por cima dos ombros e fechou a porta atrás dele. Na rua saboreou a sensação de se embrulhar com zelo no casaco comprido, enquanto ao seu lado uma correria de carros e pessoas, uns e outros com sintomas de pressa. Sentia-se num filme diferente, ninguém o esperava com impaciência, ninguém angustiado pela sua ausência. Era assim que gostava de viver, como um filho de Bali, guerreiro frio e astuto, vencedor de desafios e duro de coração. Não sabia durante quanto tempo aguentaria o frio, mas não era tempo de pensar o futuro…

terça-feira, 18 de março de 2008

Amor, Amizade, Ciúme, Eternidade e Outras Coisas Fáceis de Entender!...


Existem pessoas que alimentam tanto as desgraças delas e dos outros que, pelo desespero que se vislumbra nos seus olhos e no ácido e vinagre nas palavras envolvidas, perde-se a esperança na raça humana, na bondade das coisas e no entusiasmo da vida. Têm o condão de tornar tão negro o presente que o futuro só poderá surgir envolto em infortúnio.

Na sua companhia ficamos nervosos e pessimistas. Optimistas são os amigos. Estes dão força, não alimentam tragédias, não inventam cenários de horror. Recuperam-nos o ânimo, respondem "presente" sempre que a vida nos prega partidas. Mesmo que o seu optimismo coincida com a confissão honesta de que estamos tramados e na urgência de levantarmos a cabeça no meio do naufrágio. Sem amigos a vida seria um deserto.

Mas a amizade e o amor são faces da mesma moeda, interpenetram-se, convivem, reconhecem-se nas suas dimensões. Apenas por dificuldades semânticas temos necessidade de os distinguir por temor de se ultrapassarem fronteiras físicas. Amigos são necessariamente poucos. Não temos um coração que comporte muitos quartos e obrigamo-nos à contenção do número. Podemos relacionar-nos com muitos simpáticos, alguns simpáticos especiais, mas na altura certa reconhecemos com a absoluta certeza aqueles que estão à nossa espera, pacientes, incapazes de nos culpar dos silêncios e dos afastamentos, sempre com disponibilidade para nos ouvir. Ter amigos é uma benção.

Há aqueles que são incapazes de ter amigos, da mesma maneira que são incapazes de amar. Transformam inevitavelmente os outros em instrumentos que utilizam ao seu serviço. Se estou mal disposto, então está ali um fulano que sabe umas anedotas engraçadas... Se estou desesperado então aquele atura-me as neuras... Se estou sozinho, ali está alguém disponível para ir ao cinema. E por aí adiante. Pelo contrário, amar e ser amigo é sair de si mesmo, soltar-se da carapaça do egoísmo, entrar na esfera do outro e torná-lo parte dele. Pelo processo passamos a ser dois, três, quatro ou mais, conforme as capacidades do coração e a nossa disposição em nos desmembrarmos. Mas em excesso esvaziamo-nos e ficamos sem alma, retaliando no futuro com afastamentos premeditados. Todavia, tal como a sábia raposa, depois de cativarmos alguém ficamos responsável por ele. O amor exige resposta pronta. E quem não responde por um amigo?! Ter amigos é uma sorte.

Lá estão, quietos, cúmplices nos silêncios, a vibrar nas nossas vitórias, a partilhar os nossos maus momentos, mantendo-se ao longe, serenos na expectativa. Nada exigem. Reconhecem que o nosso afastamento não significa desprezo por eles ou insignificância do afecto. Apenas reclamam a fidelidade de mantermos limpa a estrada que nos transporta até eles, bem como de estratégias para contornar obstáculos que caiam no asfalto. Pela chama viva da saudade. O resto é insignificante. Mesmo a simpatia não é essencial. Os verdadeiros amigos, frequentemente, têm de falar alto, serem desagradáveis nas conclusões, pouco polidos na forma de as afirmar, honestos na apreciação dos factos, sinceros nas consequências. O amigo não é aquele que dá sempre palmadinhas nas costas, que favorece nas análises. O amigo é muitas vezes o advogado do diabo, o carrasco da consciência, o inimigo da boa consciência. Conhece-nos, não nos autoriza rodeios ou lágrimas de crocodilo. Só ele nos dá a liberdade de sermos verdadeiros e por isso só ele nos permite as desilusões, as machadadas no orgulho, sem desculpas esfarrapadas e sem máscaras sociais.

A amizade é eterna. Mesmo quando finda. Ao afirmarmos o amor por alguém, não o imaginamos pequeno como uma década ou minúsculo como um ano. Orgulhosos, declaramo-lo vigoroso para sempre, convictos da força que lhe permitirá ultrapassar o próprio tempo. O amor tem infinitas capacidades de resistência, à distância, à maledicência, à falta de reciprocidade, ao desgaste. Só não resiste à infidelidade ao próprio amor, à negação explícita da sua verdade.

O amor e amizade não partilham do ciúme. O amor é confiança, não é desespero. O amor é partilha não é propriedade. O amor é comunhão não é uma gaiola. O amor é descoberta não é uma exposição de loja de presentes. O amor não é exclusivo, permite outros horizontes além dele mesmo... Ser amigo é deixar partir o amigo! Não é culpá-lo da solidão porque quem ama não está só. É deixá-lo crescer, desculpá-lo das viagens, permitir-lhe fazer a vida ausente de nós. O amor é calmaria, mesmo no alto da discussão reproduz descanso. Segurança.

Quem ama tem sempre medo de perder. Por um lado, pelo medo de perder o outro; também pelo perigo de se perder a si mesmo, dissolvendo-se nele. O medo de não ser capaz de respirar e ficar sem vida própria. É o temor de se perder ele próprio se a solidão vier. Ficar sem rumo e sem destino... Se isso acontecer, a desilusão corrói a vida como a ferrugem destroi a chapa. Não há outra forma senão o procurarmos de novo. Como é generoso mantém-se na linha do horizonte, encostado a um tronco de uma árvore, tranquilo, esperando os que não perdem tempo a procurá-lo no ruído e na vertigem. O amor encontra-se no silêncio. Encontra-se na quietude de nós mesmos.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Minha Cara Amiga...


Foi com enorme surpresa que recebi notícias tuas. Pelo longo silêncio julgava-te moribunda ou, pior ainda, refém de algum grupo fundamentalista Filipino, nada meigos para com mulheres ocidentais que recusam atender reivindicações ideológicas e monetárias. Mas, afinal, continuas com a tua vidinha de sempre, nessa bonomia tão característica de quem não quer mudar uma palha para inverter a marcha das coisas. Limitas-te ao papel de vítima, resignas-te a lágrimas vertidas por opressões e amarras que são mais tuas do que daqueles a quem diriges a culpa. És infeliz, confirmas, pela proximidade com os que partilham a tua vida, uma conclusão dogmática a que não permites reservas ou contestação, pois nela te apoias para continuar a viver.

Cara amiga, permite-me a sinceridade. Se vais continuar a queixar-te das infidelidades do teu marido, do desprezo dos filhos, da frustração profissional, da solidão e por aí adiante, é bem contigo. Mas não desejo estreitar relações para ser apenas fiel depositário de desabafos infindáveis e nostálgicos de uma juventude perdida ou falta de sorte no tempo ulterior. Mais grave no teu caso, pois tudo é claro e não o assumes com medo da incumbência de tomares sobre os ombros a definição do teu caminho. Assim, a partir de agora, se quiseres relacionar-te comigo é pela positiva. Procura-me quando sorris, telefona-me para comunicares excitações e entusiasmos, escreve quando te exultares e ganhares guerras. Quanto a derrotas e decepções já tenho a minha parte. Aliás, como te alertei uma vez, os teus mutismos mais prolongados geralmente coincidem com ausência de percalços ou correspondem a etapas de equilíbrio e de optimismo. Parece que apenas me procuras para reagires à tragédia, em vez de te relacionares na esperança. Espero, sinceramente, que invertas as circunstâncias, de forma a ser possível o enriquecimento recíproco, através de contactos frequentes e profícuos. Os amigos, como bem sabes, não são para todas as ocasiões: não podem transformar-se em muletas de alguém incapaz de ser autónomo.

E se a violência do mundo alastra, num sentido metafísico, - enquanto resultado de uma alma humana cada vez mais selvagem e prevaricadora -, não é lícito que cada homem, individualmente, se represente como o indivíduo sofredor. Pelo menos aqueles que têm sobre os ombros o simples encargo de ser mais felizes do que os seus progenitores. Nós, os burgueses, pensamos sempre que o andamento do mundo se arrasta ao ritmo dos nossos passos e somos o protótipo dos sofredores por excelência. Mas é um embuste, minha cara amiga. Aqueles que encontram o desespero num buraco desconhecido e não esperam a ajuda de ninguém; aqueles que, pelo mundo fora, são julgados sem culpa formada e sem defesa; os que sofrem a barbárie do fanatismo e do tribalismo; os que morrem de fome, num processo tão lento quanto ignóbil; esses sim sofrem. A angústia está em segundos prévios a uma morte anunciada, aos instantes de terror face à eminência da execução, ou no momento em que se cruzam os braços por ausência de saídas.

O problema das pessoas como nós – exceptuando alguns momentos fugazes – é aprender, desde cedo, a colocar o semblante insatisfeito perante a vida. E os motivos são muitos semelhantes uns dos outros. Ou a relação amorosa não se vive com o entusiasmo imaginado, ou são ambições não cumpridas de férias em paraísos tropicais, ou a troca de automóvel inviabilizada por limitações das finanças familiares, ou porque os filhos não querem ser doutores e engenheiros, ou por escolherem consortes que não cabem em parâmetros de pedigree familiar, ou porque não casam e gostávamos de uns netos para preenchimento de vazios afectivos. No fundo, somos especialistas em inventar cenários de horror e motivos para preocupações. Não são azares, é forma de estar… Mas o sofrimento humano tem os seus parâmetros, identificados, datados e para os quais as angústias de “barriga cheia” são brincadeiras de crianças mimadas. Por isso levanta a cabeça, e joga forte nas tuas capacidades….

Julgar-me-ás insensível e egoísta, alguém que se acomoda por cobardia a uma vida banal, onde se tenta manter seguro e com rota definida. Tens razão. Julgo que a melhor forma de viver não é em excitação permanente ou com a elevação constante do espírito. Poderá significar lentidão, a alma adormecida num cadeirão confortável, o aceitar a inevitabilidade da angústia, do torpor, do bocejo. Mas ausência de ambição pode não significar resignação, mas simples adaptação ao que a vida é. É não a discutir, não tentar ultrapassá-la, nem a modificar de acordo com sonhos mais ou menos conscientes. Claro que o poderás fazer, até entrares num beco sem saída. Por isso, a mediocridade que falas como o espelho da vida, é apenas porque rejeitas a ideia de uma existência sem critérios de excelência (tão impossíveis quanto ineficazes) e não dás um verdadeiro passo para ocupares um percurso de realização pessoal.

Desta forma, não culpes ninguém por não seres feliz. Talvez seja aquilo que te impede de o tentares ser.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Os Olhos Transparentes


- Olha para mim! – disse, fixando-o.
- Não. Tenho medo dos teus olhos. - Ele esboçou um sorriso aberto.
- Mas como, se neles há só ternura?… afagou-lhe o braço ao de leve.
- Ternura e questionamento… acrescentou ele.
- Mas tens medo de quê? da intimidade?
- Tenho medo da verdade – ele franziu a testa em sinal de resignação…
- De qual verdade? Da tua ou da minha?
- De ambas. O que se esconde no interior da alma transparece no olhar e ficamos indefesos à sua descoberta.
- Mas tens segredos assim tão terríveis?
- Todos temos segredos. Na maioria inofensivos, mas fazem parte intrínseca de nós. Se os partilhamos esvaziamo-nos. E tu tens um olhar de detective… e deu uma gargalhada sonora.
- Vá lá, olha para mim! - ordenou ela com voz triste. Contrafeito, fixou o olhar no dela, mas rapidamente o desviou. “- Não gosto de me sentir prisioneiro. É castrador”. A voz mostrava alguma irritação.
- Nada tens a temer. Os olhos só poderão mostrar o passado. E o passado não implica necessariamente o presente.
- O presente também. São uma espécie de periscópio do coração – ripostou ele com um ar sério - A timidez, a raiva da incompreensão, a ternura, o tédio, o desespero.....
- Deixa-me olhar! – disse com voz meiga, cortando a enumeração dos achados, como se pretendesse mudar de assunto.
- Está bem! Pronto, olha à vontade, mas não digas que não te avisei! - Exclamou com voz formal.
- O castanho, a ansiedade, o sonho, a ingenuidade. Em voz radiofónica contabilizava aspectos de um cenário. “ E o medo, como se o futuro fosse uma camisa de forças. É de mim que tens medo?”
- Não, é de mim. Sempre tive. De falhar! - E afastou o rosto.
- Em quê?
- Em tudo.
- Mas não parece.
- Disfarço muito bem!…
- Mas já alguém te olhou sem quaisquer barreiras? - Questionou com a face inquieta.
- Não, até agora. Se algum dia tiver um filho, julgo que não lhe vou estabelecer quaisquer limites. Aliás, farei promessas de que sempre lhe mostrarei sem peias o olhar. Sabes porquê? Porque no meu futuro haverá sempre o dele sem mágoa. Dos outros, mesmo os mais íntimos e familiares, nunca terei a certeza. E fez uma pausa. Parecia comovido. “Mas libertemo-nos do olhar”, protestou ele. “Porque não viajamos pelo corpo todo”. E um sorriso malandro iluminou-lhe a face. Ela empurrou-o docemente, resmungando, “Os homens são todos iguais. Para resolverem uma situação delicada, nada melhor do que reenviar a atenção para o sexo. E julgo que as mulheres caem facilmente neste logro. Fica tanto por dizer por se calar a palavra com um beijo! E não há diálogo possível quando o sexo separa as águas e faz perder a atenção nos corpos. Depois, fuma-se um cigarro e depressa se encontra no silêncio a errância do tempo”.

Olhou-a como surpreendido pela perspicácia. “Está bem, vamos ao diálogo!” e riu-se. Sentou-se no chão da sala, iluminada por um raio de sol que conseguia ultrapassar as cortinas brancas. “O que eu quero dizer é que grande parte do que se pensa não se afirma. E o que se afirma não esgota tudo o que se pensa. ”
- Mas talvez seja melhor assim. – ele deitou-se no soalho com o cotovelo no chão apoiando a cabeça - As variações de humor, de esperança, de expectativas, altos e baixos numa harmonia conquistada são normais numa relação afectiva. Qualquer relação onde tudo se dissesse não encontraria o caminho. Se o desespero, as tristezas, a melancolia, se transformassem em palavras - como se a vida a dois fosse uma contínua sessão de terapia de grupo - a relação teria os dias marcados. Nem que fosse pelo amontoado de culpas que cada um colocaria no outro.
- Nisso concordo! – exclamou ela. Mas as mulheres são mais subtis e preferem revelar por sintomas do que falar dos problemas. São mais honestas nos sinais, reproduzem melhor as crises. E mais sinceras nas reviravoltas. Os homens são cobardes, por fraqueza. Resistem mais a uma boa briga e disfarçam muito melhor as conjunturas perigosas. Têm demasiado medo das rupturas. O grande problema deles é o pavor da solidão. Só um espírito feminino não tem receio e por isso é mais livre.
- Acho que tens razão. – Ele espreguiçou-se no soalho com os olhos fixos no tecto. Ficou em silêncio, parecia que procurava sentido para si mesmo.
- Sabes porquê? Interrompeu-lhe o pensamento. - A força, a independência são tudo imagens falsas dos homens. A sua fraqueza perante a dor e a doença, por exemplo, é confrangedora, a sua dependência afectiva até incomoda.

(E depois de uma pausa, ela baixou a voz e disse como se tivesse arrependido do que afirmara: “mas eu também tenho medo da solidão.”)

- Nesse sentido é natural que tenhas. Falavas em obsessão, não em simples receio. E nisso, tens razão, os homens são muito mais neuróticos. São capazes de passar a vida inteira a encontrar nas fugas, enganos e desculpas, razões para não terminarem relações doentes. É como se o temor de ficarem sós sustentasse uma solidão para toda a vida. Conheço vários casos…
- Mas também há mulheres assim. – Ela interrompeu-o mais uma vez. - O temor é morrer sós e muitas vezes esquecemo-nos que antes da morte há uma vida por viver. Mas o destino das relações é cristalizarem e morrerem. As que resistem são uma minoria e sabe-se lá quais as estratégias utilizadas para esse fim. Muitas vezes dar-lhe um golpe de misericórdia não só é saudável como um enorme contributo à vida de todos os intervenientes.
- A questão é conseguir aguentar depois o vazio, o peso de um futuro aberto, uma linha frágil de equilíbrio que aguenta o normal funcionamento da vida… Exclamou ele em tom de confidência.

Ela deitou-se ao seu lado, imitando-o, concentrando o olhar nos pontos negros do tecto. De vez em quando olhavam um para o outro e sorriam, como se os segredos mútuos deixassem de ser um peso e uma ameaça e se transformassem em simples conteúdos inofensivos, peças inorgânicas, como sucata sem valor.

A calma daquele fim de tarde poderia cortar-se com uma faca de lâminas. O ronronar das palavras foi-se atenuando até o silêncio se fazer dono de tudo. Talvez não haja razão para buscarmos o futuro em lado algum. Talvez o futuro seja um presente envenenado por desejos insanáveis. Talvez baste tratarmos do presente como um bem tão raro que só existe quando tomamos consciência da sua precariedade. Mesmo quando se afasta da dimensão do desejo e se aproxima velozmente do abismo, mesmo nessa altura, o desespero encontrará o caminho da sua redenção. Mas o olhar, por momentos, torna-se tão vazio que apenas se descobrirá nele um peso morto com vontade de vida.