A mim ninguém me alumiou o caminho. Cresci à custa de mim mesmo, às apalpadelas e a partir dos livros. Os amigos não apontam trilhos, com eles aprendemos que teremos de os palmilhar seguindo a nossa própria intuição. E desde muito cedo tive de pegar nas rédeas, não tive tempo para me espreguiçar ao sabor de um tempo morto. Vivi sempre com noção do dever no horizonte, com as culpas de pecados menores e com a ânsia de quebrar tabus. Uma vontade inquebrantável de me tornar adulto. Levou tempo até que me habituasse à dureza da própria vida, mas enfrentei todos os desafios com a coragem de um forcado. Talvez por isso quando me propuseram casar naquela tarde de Setembro, - num lusco-fusco com cheiro a folhas secas e no meio de um pó luminoso que desenhava espirais à minha volta -, concordei de imediato. Era mais um desafio como outro qualquer. Ela abriu os braços para me aquecer das intempéries e deixei-me levar pela aventura. Ambos desconhecíamos para onde íamos e era isso que nos aproximava.
E fomos em demanda da felicidade sem sabermos o que isso era, mas partíamos do presumível de que estaria mais próxima quanto mais os outros e o mundo se distanciassem de nós. Quebrámos laços e ninguém soube de nós durante anos. Numa auto-caravana percorremos lugares incógnitos, espaços de perder de vista, repetindo-se em formas e cores em dias sucessivos. Contactámos gente com linguagem incompreensível e só por gestos nos entendíamos. Não tínhamos calendários nem relógios, trabalhávamos pela urgência de dinheiro e adormecíamos durante dias quando o estômago se saciava. Mal falávamos e nada sabíamos um do outro. Encontrámos o silêncio e com ele resolvíamos os problemas de pele. Um dia, ao chegar, encontrei a casa tão vazia como se um buraco branco engolisse tudo o que era familiar. Sem mensagem, ela saiu com o mesmo silêncio com que nos defendíamos um do outro. Aliás, nunca mais a vi. Pressentiu que a vida não é um campo indefinido, não é tão clara como um amanhecer primaveril e nunca poderá ser tratada como um caminho descendente, sem obstáculos, por onde se escorrega como num artefacto de feira. Teremos de ter projectos e desejos, pois sem eles um vazio cresce e torna-se tão disforme que tritura os próprios ossos. Soube mais tarde que tinha filhos que saltitavam para o seu colo como gatos siameses, uma casa de uma dezena de assoalhadas de onde se via o mar, com vasos de flores coloridas que transformavam as varandas em jardins e até os cães tinham colchões ortopédicos.
E fui aprendendo, mas continuo em viagem. Agora já falo com aqueles que me pedem boleia e ouço-os atentamente nas suas neuras e melancolias. Consigo largar algumas lágrimas perante o seu desconforto e consolo-me com a sua desventura. Encontro-me naquela encruzilhada de poder saltar para o mundo dos humanos ou continuar em frente na tentativa de encontrar um precipício que clarifique de uma vez por todas este desejo enorme de insolvência. Por vezes, reconheço lugares por onde passo e convenço-me de que desde o início da viagem ando em círculos, como se não conseguisse afastar-me da minha própria sombra. Vou coleccionando razões para estacionar num destes dias...